Eu não aguento mais. É muita coisa pra assimilar, confirmar se é real ou se é apenas meus olhos me pregando uma peça. Tomara que eu esteja errada, e tudo isso não exista. Cara, como eu queria estar errada. Mas, no fundo, sei que estou certa.
Tudo começou na expedição ao Saara. Quando dizem que ninguém consegue sair e voltar do deserto do Saara, é 90% verdade. Eles querem dizer que as pessoas perdem a razão por conta do calor, e esquecem quem são e o que estão fazendo ali. E não sabem mais voltar. Mas isso só conta para os fracos. Os fortes de mente, alma e coração, como eu, não enlouquecem, não perdem a razão, sabem exatamente o que estão fazendo ali, mas somente os realmente puros e fortes conseguem suportar tudo aquilo que vêm pela frente.
Como eu queria ser fraca. Como eu queria não ser tão pura assim. Naquela expedição, fomos somente eu e Will, meu irmão. Se ele fosse um pouco mais forte, teria sobrevivido. Mas a morte é mais preferível do que o destino me reservou.
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...Subimos nos camelos. Andamos muito. Aquelas corcovas me incomodavam, mas eu queria ficar em cima delas pro resto da minha vida se soubesse o que eu iria sofrer depois. O sol já se punha. Estávamos ficando cada vez mais cansados. Até a tempestade de areia.
— O que é isso?! — gritara Will.
— Uma tempestade de areia! — respondi, gritando também. Fechei os olhos bem apertados, com medo daquela areia entrar em meus olhos. — feche os olhos!
A tempestade ficava mais espessa. Caímos dos camelos. Não consegui olhar. Só senti Will me abraçando, colocando-se a minha frente, me protegendo, como um escudo, da tempestade. A areia do chão estava tão quente que parecia fogo, e pinicava meu joelhos. Mas eu não me atrevi a me levantar. Estava com medo de ser enterrada nas dunas, mas isso seria muito melhor do que o que eu iria sofrer depois.
— Hallie, a gente vai morrer! — ele gritou. — enterrados pelas dunas!
Se eu soubesse o que estava por vir, teria implorado para que aquela tempestade nos soterrasse.
— Não vamos! — tentei parecer corajosa, bem mais do que estava realmente. — levanta. Vamos correr contra a tempestade, talvez possamos escapar.
Eu levantei. Mas Will me puxou de volta ao chão.
— Não é uma tempestade qualquer. Olha.
Virei o rosto com dificuldade. Com mais dificuldade ainda, abri os olhos.
Queria tê-los mantidos fechados. O que vi foi perturbador demais.
Era uma mulher, de 10 metros de altura, no meio do Saara, á nossa frente. mas ela não era, normal, digamos assim. Sua pele era toda queimada, seus dentes eram podres, lhe faltava um braço, e o toco que sobrara, sangrava. Seu vestido era feito de tendões humanos, que ainda sangravam. Ela sorria de um jeito demoníaco, sangue pingava da boca, e seus cabelos eram enormes serpentes rubis. Eu não conseguia ver seu rosto nitidamente. Ela usava uma capa de pele de cabra.
E caminhava em nossa direção.
— O que é isso?! — gritei.
— Não sei! Provavelmente estamos tendo alucinações. — disse Will.
— Os dois, a mesma alucinação? Claro que não, estamos lúcidos. Isso é real, não sei como, mas é. — afirmei. — e temos que correr, senão nossos tendões vão se juntar á aquele vestido.
— Não tem jeito da gente escapar. pra cada um passo que essa criatura dá, são trezentos nossos. — disse Will.
— Sempre há um jeito. — eu disse.
— Hallie, eu sei que você é otimista e sempre encontra um jeito pra tudo, mas pra isso?! Não tem jeito.
— Sempre há um jeito. — repeti.
Nos levantamos.
Caminhei com dificuldade até o meu camelo e abri minha bolsa. Puxei de lá uma adaga.
— Você tem uma adaga na bolsa? — perguntou Will.
— Você só pensa que sabe tudo sobre mim. — respondi. — escuta, eu vou distrair essa coisa, enquanto você pega as bolsas e corre pro mais longe possível.
Will arregalou os olhos pra mim.
— Nunca eu te deixaria sozinha nessa.
— Quer morrer ou fugir? — eu perguntei.
— Reformulando a pergunta: entre morrer ao seu lado e fugir sozinho sabendo que eu deixei a minha irmã morrer, prefiro morrer ao seu lado.
Meu olhos ficaram úmidos de lágrimas.
— Tudo bem.
Empunhei a adaga. Não faria muita diferença — aquele monstro ia usar pra palitar os dentes depois que acabasse com a gente. Mas meu pai, há mutos anos atrás, havia me dado essa adaga, dizendo que me protegeria de tudo e que mataria qualquer um que encostasse nela. Ele dizia que a lâmina lhe foi dado pelo próprio Zeus. É claro que meu pai sempre foi um velho caduco, acreditava em deuses, maldições, profecias, todas essas coisas de maluco. Mas rezei pra que tudo fosse verdade e aquela adaga pudesse matar aquele gigante.
— Ei! Aqui em baixo! — gritei.
O monstro olhou. E pude ver seu rosto mais nitidamente. Era impossível. Eu reconheci aquele rosto de um dos livros do meu pai, aquela era uma das formas de Juno, a rainha dos deuses, a forma mais medonha dela. O rosto era delicado, bem diferente de sua forma medonha. E aquela capa de pele de cabra... Eu deveria saber. Talvez ela estivesse uma pouco — só um pouco — brava por eu sempre tê-la chamado de "tia gorda que mata cabras" e sempre ter dito "não acredito em você!".
Se eu escutasse meu pai...
— Juno. — sussurrei para Will.
— A rainha dos deuses romanos, que o pai amava? — disse Will.
— Essa mesma.
— Droga, ela imortal. Não podemos vencê-la. — ele lamentou.
— Mas podemos mandá-la para o Tártaro.
Corri e enfiei a adaga em sua canela. Sangue dourado espirrou pra todo lado. E me cobriu inteira.
A dor que eu senti, não tinha comparação com nada. Fechei os olhos. Minha pele queimava, meu sangue queimava, minha alma queimava. Aquele sangue entrava em mim e transformava o meu sangue, vermelho e comum, em sangue dourado. Senti todos os meu ossos se tornando mais fortes, meu coração batia tão rápido que um cardiologista poderia ter um infarto só de medir meus batimentos. Tudo queimava. Eu sentia aquele sangue transformando-me, como se eu sofresse uma mutação.
Caí de joelhos. Apertava os punhos, gritava de dor, mas Will não podia me ajudar. Ninguém podia me ajudar.
Lembrei-me de uma coisa que meu pai havia me dito, quando tinha 5 anos: "Quando o icor, o sangue dos imortais, entra em contato com um mortal, ele imediatamente entra no corpo do mortal, transforma o sangue do mortal em sangue imortal, e faz daquele mortal um imortal".
E faz daquele mortal um imortal.
Abri os olhos. A dor passara. Juno estava caída, e seu icor jorrava longe.
Will andou até mim.
— Hal, o que aconteceu? Você matou a rainha dos deuses! E depois ficou gritando, mas eu não consegui nem me aproximar de você, você começou uma tempestade de areia! E o que... — ele cuspiu as palavras tão rápido que mal consegui acompanhar.
— Will, você sabe o que é esse sangue? O sangue de Juno, que entrou em contato comigo, uma mortal? — perguntei.
— Claro... — Will começou e depois parou. — não. Isso não é possível Hallie...
— é sim. Agora eu sou imortal. — eu disse.
— Não. — disse Will.
— Não adianta negar, Will.
Então Juno se mexeu.
— Ela não está morta?! — eu exclamei.
— Ela é imortal. Não pode morrer. — disse Will.
— Então vamos, antes que ela desperte.
— Ela vai nos encontrar.
— Vamos escapar.
Suspiramos e corremos. Corremos tanto, mas tanto, que por milagre, escapamos.
Por hora.
— Hallie, escapamos mesmo! — disse Will.
— Eu disse que escaparíamos, não disse? — forcei um sorriso.
— Hallie, eu te amo. — ele me abraçou.
— Também te amo, Will. — eu disse, abraçando-o com força.
Agora já era noite. A lua brilhava, e como em todo deserto, esfriava.
— Hal... olha ali. — ele disse.
Me virei. Uma pirâmide de pelos menos 200 metros de altura se erguia, no meio do Saara.
— Desde quando tem uma pirâmide no Saara? — perguntei.
— Desde quando existem mulheres de 10 metros de altura? — repreendeu-me Will.
— Cala a boca.
— Quer ir dar uma olhada?
— Não. Definitivamente não.
— Ah, qualé, Hal.
— Will.
— Vamos, o que você tem a perder? Você é imortal agora.
— Posso até ser, mas você não é. Depois de ver Juno, o que quer que tenha aí dentro não pode ser coisa boa. — afirmei.
Will suspirou e correu para a pirâmide.
"Só pode ser brincadeira", eu pensei. Não tive outra alternativa além de correr atrás do estúpido do meu irmão.
Entramos na pirâmide. Era enorme. As paredes eram douradas, com grandes bandeiras penduradas. Elas estavam cheias de hieróglifos que nem mesma eu, uma das maiores antropólogas do século XXI, sabia reconhecer. Havia várias fileiras de assentos, com pessoas de três metros de altura congeladas. Todas usavam togas brancas e seus rostos eram cruéis. No meio da pirâmide, havia um bolco de mármore branco com um cristal azul escuro, com inscrições douradas.
De repente me senti atraída por aquele cristal. Eu o queria. Mais do que qualquer coisa. Mas sabia que não deveria tocar nele.
Will deu uma passo a frente.
— Will, não! — eu disse, mas ele continuou andando.
— Will, não! — gritei.
Ele tocou no cristal.
Will caiu no chão e se contorceu. Ele gritava de dor. Então, ele parou. Suas pernas pararam num ângulo estranho. Seus olhos estavam fechados.
— Will! — gritei e me abaixei, deitando-me sobre ele e o sacudindo. — Will! Não!
Pus minha cabeça sobre seu peito. Suspirei, aliviada. O coração ainda batia. Pressionei o peito três vezes, tentando fazê-lo acordar. Fiz respiração boca-a-boca. Dane-se se ele era meu irmão e eu meio que o beijei, a vida dele estava em jogo.
Sentei-me e pus seu corpo em meu colo. Levantei seu cabeça. As lágrimas eu nem tentava conter. Minha alma parecia ter ido embora. Não havia nada no mundo inteiro que eu amasse mais do que Will. Se ele não fosse meu irmão, com certeza me apaixonaria perdidamente por ele.
— Will, não me deixe... — eu implorava. — eu te amo, por favor não vá...
Seus olhos se abriram, assustados. Eu respirava com dificuldade. Não pude conter a felicidade por ver que ele estava vivo. O abracei. Ele retribuiu.
Então, uma voz retumbou na pirâmide.
— Eu vejo você, William Sanders.
— O que é isso?! — ele gritou. Me abraçou com força, me protegendo, como se tivesse sido eu que quase havia morrido.
— Eu vejo você, William Sanders. — repetiu a voz. — irmão protetor, bom filho, bom pai, bom marido. Digno de ser um Caçador do Medo.
— Sou digno do quê?! Quem está falando? — Will estava desesperado.
Uma figura medonha apareceu ao nosso lado. Estava encapuzada, vestida de preto, e deixava tudo ao seu redor preto e branco.
— Sou o primeiro Caçador do Medo.
— Você mandou Juno atrás de nós. — eu afirmei. — por quê?
— Eu precisava saber se um dos dois era digno de ser um Caçador do Medo.
— O que significa ser um caçador do medo? — perguntei.
— Caçar o Medo, Hallie Sanders, é a arte de caçar o próprio medo. — respondeu a figura.
— O quê?
— Quando eu digo medo, digo os Blindies e outras criaturas. — explicou a criatura.
— Os Blindies? Que merda são Blindies? — eu perguntei.
— As criaturas responsáveis em por o medo nas pessoas. É dever de um caçador do medo matar os Blindies e trazer paz na Terra. Não somente os Blindies, mas outros monstros também. E vocês são os escolhidos para serem Caçadores.
— E por que nós? — perguntou Will.
— Vocês são puros. Não há nenhum ser humano na Terra mais puro que qualquer um de vocês. — respondeu a figura.
Suspirei.
— Mas... — a figura começou.
— Mas o quê? — perguntei.
— Somente um de vocês pode ser o caçador. Um tem que morrer.
Eu e Will nos olhamos.
Um de nós teria que morrer?
— Não queremos ser Caçadores. Não pedimos isso. Ninguém morre. — disse Will, com convicção.
— Vocês lutarão entre si. Um irá matar o outro. Ou nunca sairão daqui. Amaldiçoarei suas almas. Verão para sempre em suas cabeças o irmão sendo morto. E ficarão loucos.
— Ter você viva vale o sacrifício. — disse Will.
— Não vale. Prefiro ver você morto pelas minhas mãos do que louco e amaldiçoado. — eu disse. Virei-me para a criatura. — eu sou imortal agora. Eu vencerei de qualquer maneira. Como faremos disso uma coisa justa?
— Eu permito que você se torne mortal durante o combate. — disse a criatura. — armas.
Uma espada apareceu em minha mão e outra na de Will.
— Will, eu te amo, não quero lutar contra você. — eu disse. — mas prefiro vê-lo morto do que amaldiçoado.
— Hallie, também não quero lutar com você. Mas acho melhor que você morra aqui, porque não quero vê-la louca.
— Quem disse que irei morrer? — eu perguntei. — me desculpe, irmão, mas é você que irá morrer hoje, não eu.
— Comecem! — gritou a criatura.
Empunhei a espada e investi contra meu próprio irmão, uma luta em que apenas um sobreviverá...
CONTINUA...