Elissa Davey, fundadora do "Garden of Innocence" ("Jardim dos Inocentes", em português)
"Se as pessoas descobrissem que ela estava em um canteiro de obras, com ninguém por perto à noite, você pode apostar que alguém iria roubá-la. As pessoas a utilizariam para algo macabro. Para bruxaria. Eu queria tirá-la de lá", disse Elissa Davey, em entrevista para o SFGate. Era óbvio para ela, que os pais de "Miranda" a amavam muito.
"Só de olhar para a forma como eles a vestiram. A tristeza deles foi muito grande. Vamos amá-la da mesma forma", continuou.
Elissa Davey contratou sua sobrinha para que fabricasse um segundo caixão feito de madeira de bordo (maple), que fosse grande o suficiente para então colocar o caixão original de "Miranda" dentro dele.
"Não quero que ela seja ainda mais pertubada do que já foi", acrescentou.
Na semana que vem, Elissa Davey irá até a cidade de São Francisco para uma reunião com representantes dos Odd Fellows para providenciar um funeral para a menina, que está sendo planejado para o mês que vem no Parque Memorial Greenlawn, na cidade de Colma, isso se a organização receber uma autorização de sepultamento por parte das autoridades de São Francisco, é claro. Ela também tem como objetivo, ao menos tentar identificar a menina, por mais que essa seja uma árdua tarefa.
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Na semana que vem, Elissa Davey irá até a cidade de São Francisco para uma reunião com representantes dos Odd Fellows para providenciar um funeral para a menina, que está sendo planejado para o mês que vem no Cemitério Parque Memorial Greenlawn (na foto), na cidade de Colma |
"Ela vai voltar para casa com o amor da nossa comunidade. Isso é tudo o que queremos", completou.
Sinceramente, AssombradOs, não sei nem o que dizer nesse momento para vocês. Quero apenas continuar um pouco dessa história, e contar para vocês sobre quem é Elissa Davey, o "Garden of Innocence", e um breve resumo sobre a sombria história, que muito provavelmente deu origem a tudo isso.
Um Breve Resumo do Sombrio Passado que o Solo de São Francisco Esconde de Seus Novos Moradores
A pequena cidade de Colma, fica localizada ao sul da cidade de Daly, no Condado de Sao Mateo, na Califórnia. Segundo o último censo realizado em 2010, a cidade conta com pouco menos de 2.000 habitantes, porém, nem de longe essa é uma cidade comum, como tantas outras dos Estados Unidos.
Imagem do Google Maps mostrando a distância entre a cidade de Colma e a cidade de São Francisco
Se uma pessoa for dirigir por essa cidade, vai notar que um mesmo cenário sempre se repete: lápides, e em seguida uma floricultura, mais lápides, outra floricultura, e assim sucessivamente. Se Las Vegas foi construida para ser um palco do entretenimento para jogos de azar, bem, Colma foi criada para abrigar a morte.
Quase três quartos da cidade que possui uma extensão territorial de aproximadamente 5.697.974 m² está coberta por cerca de 17 cemitérios, que abrigam um vertiginoso número entre 1,5 e 2 milhões de corpos. Isso mesmo que você leu, não errei nessa conta.
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Se Las Vegas foi construida para ser um palco do entretenimento para jogos de azar, bem, Colma foi criada para abrigar a morte. Quase três quartos da cidade que possui 4.945 km² está coberta por cerca de 17 cemitérios, que abrigam um vertiginoso número entre 1,5 e 2 milhões de corpos. |
Por outro lado, se você quiser observar sepulturas na cidade de São Francisco, suas escolhas serão bem limitadas. Basicamente só existem dois cemitérios na cidade. Um deles é o Cemitério Nacional de São Francisco, que fica localizado no Parque Presidio, uma antiga aérea militar da cidade, portanto tecnicamente é um cemitério federal (do próprio governo norte-americano). O único cemitério da cidade seria apenas o "Mission Dolores", porém atualmente ele ocupa apenas um sexto de seu tamanho original, sendo que 11.000 corpos tinham sido enterrados no local entre os anos de 1782 e 1898.
Pode parecer estranho, mas um dia a cidade de São Francisco já esteve repleta de cemitérios.
Durante o período da "Corrida do Ouro" (também conhecida como a "Febre do Ouro") na Califórnia, entre 1848 e 1855, as pessoas decidiram construir cemitérios na região oeste da cidade, onde na época ninguém jamais iria querer viver. Quatro grandes cemitérios foram construídos: Laurel Hill, Calvary, o "The Independent Order of Odd Fellows" (Cemitério dos Odd Fellows) e o "Masonic Cemetery" (Cemitério Maçônico). Eles ocupavam o espaço onde atualmente está localizada a Universidade de São Francisco.
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Durante o período da "Corrida do Ouro" (também conhecida como "Febre do Ouro") na Califórnia, entre 1848 e 1855, eles decidiram construir cemitérios na região oeste da cidade, onde na época ninguém jamais iria querer viver. Quatro grandes cemitérios foram construídos: Laurel Hill, Calvary, o "The Independent Order of Odd Fellows" (Cemitério dos Odd Fellows) e o "Masonic Cemetery" (Cemitério Maçônico). A imagem, que na verdade é um mapa de 1873, também mostra o Cemitério de Lone Mountain. |
Entretanto, a população de São Francisco cresceu rapidamente, casas foram construídas por todos os lados do que havia se tornado um verdadeiro complexo de cemitérios. Os bondes tinham que transitar ao redor das verdadeiras "ilhas dos mortos" para transportar os moradores tanto para o trabalho, quanto de volta para suas casas. A terra que antes não valia absolutamente nada, se tornou valiosa rapidamente, e as pessoas começaram a ficar contra os cemitérios. Eles estavam "incomodando".
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O Cemitério Golden Gate, exibido em um mapa de 1876, por William P. Humphreys & Co. |
Em 1880 os moradores da cidade de São Francisco estavam ficando cada vez mais descontentes, uma vez que tinham que conviver diariamente com uma série de funerais, e um clima muito negativo após um dia cansativo de trabalho. E a partir disso, uma verdadeira campanha surgiu para acabar com os cemitérios. Frases como "Os cemitérios devem ir embora!" começaram a surgir nas manchetes de jornais locais, e os moradores começaram a ficar preocupados com a propagação de alegações histéricas sobre os "perigos para a saúde" sobre a presença de cemitérios no meio urbano.
"Os cientistas alertaram que doenças relacionadas a garganta, constantemente se tornam algo do tipo maligno... quando os pacientes são expostos a um vento que sopra de um cemitério lotado", escreveu Michael Svanevik e Shirley Burgett, em um livro chamado "Cidade das Almas", publicado em janeiro de 1995. Resumindo, uma onda de boatos assustadores começou a se espalhar por São Francisco.
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Os bondes tinham que transitar ao redor das verdadeiras "ilhas dos mortos" para transportar os moradores tanto para o trabalho, quanto de volta para suas casas. A terra que antes não valia absolutamente nada, se tornou valiosa rapidamente, e as pessoas começaram a ficar contra os cemitérios. A foto mostra o antigo "Calvary Cemetery" ("Cemitério do Calvário") em 1930. |
Em 1901, a cidade de São Francisco proibiu quaisquer novos funerais dentro dos limites da cidade, parte do que Svanevik e Burgett chamaram de "Cinturão da Morte." Durante décadas, o assunto principal ainda seria o que fazer com os cemitérios da cidade.
Entretanto, essa proibição gerou um problema ainda maior. Depois que a cidade São Francisco proibiu novos enterros, não havia dinheiro para cuidar dos cemitério existentes, e muitos cemitérios simplesmente caíram em ruínas. Estátuas e lápides foram derrubadas. Os valiosos portões de bronze de mausoléus particulares foram roubados. Segundo informações da época, as pessoas ficavam vagando totalmente bêbadas dentro dos cemitérios, e até mesmo participavam de orgias sexuais durante as madrugadas. Esqueletos inteiros foram levados para serem utilizados como "decoração de Halloween" por muitos moradores locais, e houve relatos que pessoa jogavam futebol com crânios, que davam lugar as bolas de futebol. Um verdadeiro caos se instaurou nos prestigiados cemitérios da cidade ao longo do tempo.
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Sem dinheiro para custear as devidas manutenções, cemitérios como o de Laurel Hill (na foto) rapidamente se deterioraram |
Em 1912, São Francisco anunciou que iria fazer mais do que proibir novos enterros. A cidade queria que os cemitérios deixassem definitivamente a cidade. Porém, antes da proibição, e logo que começou uma maior insatisfação por parte dos moradores de São Francisco, dois cemitérios judaicos, o "Hills of Eternity" e "Home of Peace", abandonaram os terrenos, que hoje compõem o Parque Dolores, e se transferiram para uma fazenda em Colma. Alguns anos mais tarde, a Arquidiocese de São Francisco criou o "Holy Cross Cemetery" ("Cemitério de Santa Cruz"), em Colma.
Foi assim que em 1924, cerca de 14 associações de cemitérios fundaram a cidade de Lawndale (nome original de Colma). A única cidade fundada com o único propósito de preservar e proteger os mortos. Os fundadores tinham boas razões para ser bem sinceros sobre o propósito da nova cidade, visto que muitos dos restos mortais que foram parar em Colma, tinham sido realocados por diversas vezes. Eles não queriam que ninguém vivesse em Colma, exceto se fosse uma floricultura ou com alguma finalidade relacionada a cemitérios (muito embora não seja bem essa a realidade hoje em dia).
Ao final desse processo, cerca de 150.000 corpos foram desenterrados dos quatro grandes cemitérios de São Francisco e realocados em Colma. A exumação e transporte dos corpos, no geral, foi uma operação muito sofisticada para a época. Se o caixão estivesse em bom estado, eles o transportavam juntamente com o corpo. Se o caixão havia se deteriorado com o tempo, os ossos eram colocados em caixas. Os restos mortais eram obrigados a serem levados por um carro fúnebre no mesmo dia da exumação. A Igreja Católica também exigiu a presença de um sacerdote para testemunhar a exumação de corpos de alguns cemitérios, como foi o caso do "Calvary Cemetery" ("Cemitério do Calvário", em português).
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Ao final desse processo, cerca de 150.000 corpos foram desenterrados do quatro grandes cemitério de São Francisco e realocados em Colma. A foto mostra trabalhadores exumandos os corpos no Cemitério dos Odd Fellows |
"As condições dos restos mortais desenterrados variavam de 'poeira' até corpos quase perfeitamente embalsamados, sendo que estes eram o resultado de caixões de ferro fundido preenchidos com águas subterrâneas, que atuavam como conservantes. O cheiro de morte era frequentemente presente, mesmo que os restos mortais tivessem sido enterrados entre 30 e 70 anos atrás", escreveu William Proctor, em um relatório do Departamento de Planejamento da Cidade de São Francisco, em 1950.
Quando os cemitérios de São Francisco deixaram a cidade, os corpos foram transportados gratuitamente, porém o mesmo não se podia dizer a respeito das lápides. Se o corpo possuísse algum familiar ainda vivo, o mesmo teria que custear o transporte da lápide. Muitos parentes não puderam ser encontrados,e a maioria das lápides não seguiram viagem para Colma. Em vez disso, cada uma delas foram vendidas por alguns míseros centavos para serem utilizadas em obras públicas.
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Trabalhadores removendo os corpos do cemitério dos Odd Fellows |
Criptas inestimáveis, túmulos e mausoléus particulares foram praticamente "saqueados" sem a menor cerimônia, e utilizadas na construção de quebra-mares na Baía de São Francisco, e até mesmo em um Iate Clube da cidade. As lápides descartadas foram utilizadas para construir um dique, sendo que de tempos em tempos ela ressurgem em praias, assim como aconteceu em "Ocean Beach" em 2012. E como se tudo isso não bastasse, foram deixados milhares de corpos para trás.
Em 1950, durante a construção da Biblioteca Glesson, que pertence a Universidade de São Francisco, e que por sua vez foi praticamente construída sobre o Cemitério Maçônico, pelo menos 200 corpos foram encontrados durante as escavações. Em 1966, durante a construção do Dormitório Estudantil Hayes-Healy, também na Universidade de São Francisco, os operários encontraram muitos ossos e crânios, tantos que eles se recusaram a continuar trabalhando até que os restos mortais fossem transferidos para outro local. Em 2011, quando as escavações começaram para construção do Centro de Ciência e Inovação, cerca de 55 caixões, 29 esqueletos e diversos crânios foram descobertos na mesma área universitária.
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Diagrama mostrando onde alguns dos restos mortais de pessoas que tinham sido enterradas no Cemitério Golden Gate foram encontrados durante uma reforma no "Legion of Honor", em 1993 |
Uma das descobertas mais surpreendentes aconteceu em 1993, quando um museu de artes de São Francisco chamado "Legion of Honor" passou por uma reforma para protegê-lo de abalos sísmicos. Quando as escavações começaram, cerca de 750 corpos que pertenciam ao antigo Cemitério Golden Gate, que foi utilizado de 1868 a 1909, foram descobertos. Cerca de 18.000 pessoas tinham sido enterradas no local.
A verdade é que São Francisco nunca contou exatamente os seus mortos, e não se sabe exatamente quantos ainda existem debaixo de seu solo, visto que a qualquer momento, basta uma simples reforma de uma casa ou a construção de um novo empreendimento, que novas descobertas podem ser feitas.
Considerações Finais
Quem é "Miranda"? Quem é aquela garotinha que acreditam ter apenas 3 anos de idade, que nos fez querer estar em seu "segundo funeral" ao longo de toda essa postagem? Não sei quanto a vocês, mas eu me emocionei por duas vezes em traduzir e escrever todo esse texto, e isso me fez questionar as razões pelas quais "Miranda" estava justamente quieta, repousando ao longo de décadas embaixo de uma casa onde um dia, uma menina igual a ela nasceria e seria mãe de outras duas crianças. Não é de hoje que "Miranda" havia encontrado seu lar, visto que ela sempre esteve no lugar certo. E mesmo que seu destino a tenha feito passar pelas mãos sórdidas de empreiteiros ao longo das décadas, ainda sim ao final de tudo isso ela se encontraria em mãos abençoadas de uma mãe, que ao se deparar com seu corpo dormindo profundamente em sua última morada, a adotou como filha, assim como aqueles que um dia a amaram em vida.
Miranda não é apenas um corpo dentro de um caixão, ela é uma reflexão sobre nós mesmos e os valores que damos as pessoas as quais amamos. Ela é um símbolo de todo um processo que aconteceu na cidade de São Francisco durante o início do século 20, onde mais de 150.000 corpos de pessoas foram realocados sumariamente em outros locais, até que finalmente pudessem ter um relativo descanso em uma cidade fundada somente para eles. Infelizmente, sepultamentos coletivos fizeram parte desse mesmo processo, e muitas lápides foram perdidas pelo descaso das autoridades públicas na época. Sinceramente, com a opinião pública norte-americana e o conhecimento científico que temos hoje em dia, essa história talvez não se repetisse com tanta facilidade em São Francisco. Porém, a ponta do icerberg exposta pelo gélido corpo de Miranda, dentro de um caixão de bronze, não reflete essa opinião. A prefeitura da cidade de São Francisco simplesmente lavou suas mãos diante de um problema visivelmente muito mal administrado por eles mesmos por mais de um século. Não importa quem assume, se deseja ocupar o cargo para gerenciar uma cidade, que aceite também toda sua história.
Talvez nunca saibamos a real história por trás de Miranda, quem eram seus pais, do que ela morreu, e o quão feliz ela pode ter sido durante sua breve estadia nessa terra. A cidade que tentou ocultar seus mortos, fingindo que eles não eram de sua responsabilidade continua fazendo descobertas. Essas descobertas possuem um nome, uma vida, uma família, uma história que muitas vezes jamais será lembrada novamente. Tenho certeza que se nesse caixão houvesse algumas moedas de ouro, mesmo que fossem poucas, rapidamente apareceria alguém da administração pública para confiscá-las em "nome do interesse público", e prontamente a sepultariam de forma simbólica para demonstrarem sua gratidão. O caixão de Miranda não reluzia tanto quanto gostariam, porém ele refletia a dignidade de muitos dos novos moradores de São Francisco, que não aceitaram ou não se esconderam atrás de uma hipocresia histórica, e foram atrás para devolver a tão almejada paz para aquela menina. A verdade é que Miranda não faz mais parte da cidade de São Francisco, ela faz parte, ainda que uma pequena parte, de cada um de nós.
Criação/Tradução/Adaptação: Marco Faustino
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